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sábado, 4 de janeiro de 2020

A Ciência de Dr. Stone - Parte 3: Especial Criação de Remédios

E, como prometido, aqui está a parte 3! Não se esqueçam de checar a parte 1 e a parte 2!
Nessa postagem vamos estudar por completo todo aquele primeiro mapa do Senku, ou seja, vamos analisar cada pedaço da criação do remédio!
Espero que estejam prontos, porque essa postagem ficou grandinha. Lembre-se que não é preciso ler de uma vez, dá para pausar e continuar lendo depois por conta da estrutura de tópicas. Eu poderia ter dividido em mais postagens, mas acho que fica mais legal ter todo o processo em um lugar só. Além disso, quis comentar vários pontos porque tem muita coisa legal que foi mostrada.

Antes de começar, gostaria de dar uma mensagem importante. A minha especialidade é nas ciências como química, biologia e, especialmente, física. Não sou médico nem fiz farmacologia. Então posso avaliar mais as partes da ciência, como os procedimentos, não usem o que é descrito para se tratar por conta própria, fazer remédios em casa. Sempre que se trata de remédios, procure um médico!

Primeiro, que história é essa de remédio que cura tudo? Infelizmente, isso não existe. 
Doenças são causadas por coisas diferentes, às vezes são seres vivos, às vezes são funcionamentos incorretos do corpo, entre outras coisas. Até o que chamamos como uma mesma doença, como o câncer, pode ter causas diferentes. É por isso que provavelmente nunca conseguiremos a cura de todas as doenças em um remédio só.
Mas e o antibiótico?
Em Dr. Stone, Senku comete um erro que muita gente comete até hoje: nem todas as doenças podem ser combatidas com antibióticos!
Antibióticos são remédios para combater micro-organismos simples, principalmente bactérias. Isso porque o mecanismo de funcionamento deles trabalha para afetar esses organismos, como por exemplo destruindo o metabolismo deles ou impedir que eles se multipliquem. Doenças causadas por bactérias incluem infecções, tuberculose e tétano. Ainda assim, é preciso consultar um médico para saber qual o melhor antibiótico para qualquer situação.
Nunca tome antibióticos só por estar doente sem indicação médica, isso pode te fazer muito mal! Primeiro que pode destruir as bactérias "boas" que temos no corpo, como as que nos ajudam a digerir alimentos, depois que ainda pode acabar imunizando bactérias e tornando-as cada vez mais resistentes.
Antibióticos não atingem vírus, então são inúteis contra doenças como gripe, catapora e dengue.
Eu entendi que Senku sugeriu arriscar usar um antibiótico já que não poderiam fazer um exame e descobrir a doença, só que esse foi um movimento muito arriscado. E também sei que ele já tinha a suspeita sobre a doença. Só que ele poderia ter piorado a saúde de Ruri dando a ela um remédio para uma doença que ela não tem.

Bom, nós sabemos que Dr. Stone toma essas liberdades, então vamos seguir para analisar outros aspectos.
Senku sugere duas formas de obter antibióticos: por meio de bolor verde ou de forma mineral.
Vamos por partes.
O bolor verde é um tipo de fungo, do gênero Penicillium. Alguns desses fungos produzem uma substância chamada penicilina. Em 1928, o biólogo britânico Alexander Fleming notou que as bactérias que ele estava cultivando morriam em contato com um mofo. Essa foi a descoberta de que a penicilina tinha propriedade antibactericida, o que foi revolucionário no tratamento de doenças.
E podemos dizer que ainda bem que Senku não escolheu esse método! A penicilina em si oferece um risco minúsculo, menos de 1% sofrem com efeitos colaterais, o problema está no bolor verde e em todas as formas anteriores até chegar na penicilina. O mofo carrega toxinas que podem causar intoxicações terríveis, então seria muito perigoso testar esse remédio.

Ficamos então com a forma mineral, chamado de sulfa. A sulfa tem como nome técnico sulfametoxazol e faz parte de um grupo maior de antibióticos, as sulfonamidas. Não se preocupe em lembrar desses nomes. Enquanto as sulfonamidas podem ter efeitos variados dependendo do tipo, a sulfa em específico é um antibiótico especialista em fazer com que as bactérias parem de se proliferar pelo corpo.
As sulfonamidas não são naturais, e sim sintéticas, e é por isso que foi preciso criar um laboratório inteiro do zero. Todo esse processo ficou indicado naquele mapa sensacional, que tomei a liberdade de traduzir e colocar aqui:


Antes de tudo é preciso obter ferro. Essa descoberta é tão grandiosa na história da humanidade que é responsável por uma transição, o início de um período chamado de Idade do Ferro. Dependendo do lugar do planeta, essa idade começou em um período diferente e com métodos diferentes. O método que Senku usa era o mais comum, obviamente, no Japão.
Chamado de tatara, o processo envolve misturar areia de ferro (que é um minério de ferro em pó) com carvão. O carvão fornece o carbono, que ajuda a endurecer o ferro. Só que, para isso, é preciso atingir a exorbitante temperatura de 1500 graus Celsius.
Uma fogueira comum pode atingir pouco mais de 1000°C e isso até daria pra derreter a areia de ferro, só que demoraria dias e consumiria muitos recursos. Então é preciso construir um forno de forja. A vantagem do forno é a cobertura de argila que retém o calor lá dentro e, principalmente, a presença dos foles que empurram ar no fogo. Como o fogo precisa constantemente ser alimentado com ar, o fole mantém esse fluxo, deixando o fogo alto sempre.
Inclusive, aquele modelo de soprador que é usado pelos personagens se parece bastante com o fuigo, um soprador típico das forjas japonesas.

Temos ferro, vamos para o primeiro ingrediente: os ímãs.
Todos os materiais são compostos por partículas elementares e algumas delas tem um alinhamento que podemos chamar de polo norte e sul (uma polaridade, no termo correto). Para facilitar o entendimento, vamos imaginar que temos setas onde o começo é um pólo e a ponta é outro. Essas setas numa direção só é que geram um campo magnético.
Normalmente, as setas desses materiais estão apontando para lugares aleatórios (o que faz o campo se cancelar), porém certos materiais possuem a propriedade de ficar com setas alinhadas por muito tempo. Se as setas estão apontando todas para um mesmo lado, a peça inteira passa a ter uma polarização também (gerando um campo magnético alinhado). Um ímã é isso, um material que possui suas setas apontando para a mesma direção. Podem ocorrer na natureza, alguns minerais como a magnetita já existem assim, só que eles são bem fracos porque não estão completamente alinhados. É o que vemos em Dr. Stone, as pessoas da vila já conheciam os minerais magnéticos,  na história real, a civilização humana já conhecida desde a Antiguidade também, de tão comum que são. Bússolas são feitas a partir deles, já que um de seus polos aponta na direção do campo magnético do planeta.
Para o uso em mecanismos, é preciso que o ímã seja poderoso e não temos tão fortes na natureza. Acontece que alguns materiais (principalmente metálicos) podem ter suas setas forçadas a ficarem em uma direção, basta aplica um campo magnético nele.
Vamos a um exemplo prático. Se você pegar uma chave de fenda e aproximar por um tempo de um ímã, o campo magnético do ímã vai forçar as setas do metal da chave a se alinharem e aí ela própria vai virar um ímã. Eu percebia isso quando vários parafusos grudavam na chave de fenda. Só que, como esse alinhamento não é natural do material, as setas vão voltando à sua posição original com o passar do tempo e a chave perde o magnetismo.
Para aumentar o tempo em que as setas são forçadas a apontarem para o mesmo lado, basta aplicar um campo magnético mais forte. É assim que são feitos os ímãs artificiais: coloca-se um pedaço de metal em um campo magnético muito forte, normalmente gerado por eletricidade.
Ah, não é qualquer metal, ele precisa ter a propriedade de deixar suas setas serem modificadas. Alguns são melhores que outros para isso. Chamamos de ferromagnéticos os que ficam polarizados só com um pouquinho de campo magnético (ex: ferro, níquel e os ímãs naturais); paramagnético são os que precisam de um campo muito forte para polarizarem (ex: alumínio, platina e alguns não-metais, como sódio); e existem os diamagnéticos, que não se alinham de jeito nenhum (ex: ouro e alguns não-metais, como a água).
Outro jeito é submeter a peça a uma corrente elétrica muito forte, que é o que Senku faz ao usar um raio. Só que aí surgem os problemas. Raios estão entre as coisas mais poderosas da Terra. Têm uma corrente elétrica muito alta, geram muito calor, deslocam o ar com tanta velocidade que ouvimos uma explosão (o trovão), só para citar algumas das habilidades. Teoricamente, daria para polarizar uma barra de metal com um raio e transformá-la em um ímã, só que antes essa barra provavelmente iria derreter, ou explodir. E aquele para-raios improvisado deixaria de existir numa fração de segundos.
Existem estudos dizendo que, provavelmente, vários ímãs naturais surgiram de raios que caíram na Terra. Ainda assim é muito difícil imaginar que Senku e seus amigos conseguiriam de primeira e naquelas situações.

O segundo ingrediente é bem simples. O cobre é minerado desde a idade da pedra, normalmente usado para fazer ferramentas, já que ele é bem fácil de ser extraído e modelado. Vemos essa propriedade quando Chrome, usando uma pedra, consegue fazer um disco bem grande. A grande utilidade do cobre aqui é que ele é um excelente condutor de eletricidade, por isso é o mais usado até hoje nos fios para transmissão de energia elétrica.

O terceiro ingrediente é o fósforo. Talvez eu não tenha entendido direito, mas não ficou claro pra mim pra quê ele seria usado. Na verdade, ele nem é usado. Eu imagino que a ideia original de Senku era usá-lo como isolante para os fios, só que foram substituídos pela laca.
A laca é um verniz que pode ser usado para cobrir quase todo tipo de material, em especial os feitos de madeira, como móveis, instrumentos musicais e escudos, deixando-os mais resistentes, duráveis e à prova de água. No Japão, essa laca costuma ser retirada de uma árvore chamada laca-japonesa ou laca-chinesa (nome científico: Toxicodendron vernicifluum, para evitar confusões).
Até hoje fios de cobre são cobertos com uma camada de esmalte, só que agora com compostos mais modernos. Isso serve para um fio não dar curto-circuito ao encostar no outro e, num caso mais extremo, caso alguém encoste no fio não tome um choque. Com aquelas condições de eletricidade, certamente a laca iria servir.

Com tudo isso é possível montar o gerador de energia elétrica! Achei bem curioso que Senku (por consequência, o autor do mangá) gosta de explicar absolutamente tudo, mas não explicou o funcionamento o gerador. Mesmo assim, vamos ver aqui como ele funciona.
O tipo de gerador criado se chama gerador homopolar e o funcionamento é bem simples. No eletromagnetismo, existe uma lei que estabelece que uma carga se movendo na presença de um campo passa a ter uma força agindo sobre ela.
Com isso, dá pra perceber como cada parte do gerador é essencial.
A carga que queremos são os elétrons presentes no cobre, e como o cobre é um metal condutor, seus elétrons têm liberdade para se mover. Quando o disco é girado, colocamos essas cargas em movimento. Repare na imagem do gerador como o disco gira no meio dos ímãs. O polo norte de um ímã e o polo sul do outro se ligam por meio de um campo magnético invisível e este acaba cruzando o disco que está entre eles.
Assim, temos cargas em movimento na presença de um campo, ou seja, as cargas vão sentir uma força que vai fazê-las se mover para um único lado (na direção da borda ou na direção do centro, depende do sentido do giro). Com isso, temos uma parte do disco com menos cargas e outras com mais e isso que gera tensão elétrica. Uma pilha, por exemplo, é exatamente isso: uma ponta com mais elétrons e outra com menos.
Portanto, se ligar um fio no meio do disco e outro perto da borda, há uma diferença entre a quantidade de cargas que gera energia elétrica. Repare como tem um fio na borda do disco.

A maioria das formas de geração de energia que temos hoje no mundo não segue exatamente esse princípio, até porque ele não gera a quantidade de energia necessária para manter muitas casas ligadas. Mas quase sempre essas formas utilizam a parte de girar algo dentro de um campo magnético, o chamado dínamo. O que as diferenciam é o que faz o dínamo girar: na hidrelétrica é a água passando pelas pás da turbina, na termoelétrica é o vapor movimentando também uma turbina, na eólica é a força do vento girando adivinha o que... uma turbina.
Sinceramente, eu esperava que Senku desenvolvesse um método para girar os discos com mais eficiência e sem precisar de trabalho humano. Poderia ter colocado com uma queda d'água movendo pás, ou usar o vento. Porém eu entendi que usar a força humana faz parte da piada.

Se eu fosse chamado para fazer um Top 5 de invenções da humanidade, certamente a eletricidade estaria nos primeiros lugares. Eu nem preciso dizer muito aqui, afinal o discurso do Senku foi tão incrível que até me arrepiei. Esse discurso é dado logo após ele fazer uma lâmpada com... bambu?
Pode parecer surpreendente, mas realmente é possível fazer uma lâmpada com filamento de bambu. Inclusive, esse foi um dos materiais usados pelo inventor americano Thomas Edison quando ele estava testando o que serviria melhor em uma lâmpada.
O princípio é simples. Lá em cima eu citei que a eletricidade passando por um material o aquece. Ao fazer isso com um fio bem fino, a eletricidade vai aquecê-lo a ponto de ficar incandescente e é daí que vem o brilho. A parte difícil é encontrar algo para fazer o fio que resista a ser aquecido sem quebrar (afinal, se quebrar, a eletricidade para de passar). Os inventores testaram várias coisas, como linhas de algodão, barras de carvão e fios metálicos.
Hoje o filamento é feito de tungstênio, um metal que precisa de uma temperatura bem alta (3000°C) para derreter. Além disso, todo o ar é removido de dentro da lâmpada, assim o entorno do fio não esquenta.
O filamento de bambu até que dá um resultado bom, se comparar com as lâmpadas da época em que foi criada, porém não chega nem perto da eficiência das modernas. Provavelmente alguns segundos depois daquela luz que Senku gerou o filamento se rompeu e a escuridão voltou.
Ah, vale citar que as lâmpadas de filamento estão sendo colocadas de lado, afinal a maior parte da energia que ela consome vira calor e não luz, ou seja, tem muito desperdício com algo inútil.

A parte seguinte é fundamental para laboratórios: a vidraria. Mas por que tem que ser vidro e não continuar na argila? O vidro é muito usado nos laboratórios por causa de suas propriedades. Para começar, ele não interage com a maioria das substâncias, então dá para colocar praticamente todo tipo de coisa dentro dele que não vai estragar a mistura. Outra vantagem é que o vidro aguenta muito bem a mudança de temperatura sem trincar ou estourar. E algo que a argila não tem é a transparência do vidro, o que permite ver muito bem qualquer mudança na substância.
Comparado à tudo que foi feito até agora pelo Reino da Ciência, fazer vidro não é tão difícil.
O principal componente do vidro é também uma das substâncias mais comuns na Terra: a sílica. Alguém mais purista pode querer algo mais específico, só que para nossos propósitos podemos dizer que sílica é basicamente areia. Para dar mais propriedades ao vidro, como sua dureza, é preciso misturar outros componentes, entre eles o carbonato de cálcio que vimos na Parte 1. Depois, a mistura é lavada até um forno, onde aquece ao ponto de derreter. Como moldar essa massa derretida é um tanto complicado, o ideal é fazer isso usando um canudo de sopro, já que ele dá uma forma bem simétrica ao material. Quando solidifica, fica transparente. 
É preciso bastante prática para controlar a intensidade, a quantidade e o modo do sopro, além da quantidade de cada material. Por isso os povos antigos que faziam vidro não começaram a fazer de uma hora pra outra, foram décadas de experimentação misturando coisas até ver o que funcionava bem e descartando o que não funcionava.

Para finalizar, chegou a hora das substâncias para o remédio.
O ingrediente mais difícil de todos que Senku cita é o ácido sulfúrico, um nome que acabou se tornando temido por conta de outras obras. Antes de falar diretamente dele, quero comentar das fontes termais.
Essas fontes são famosíssimas no Japão. São nascentes de água com alta temperatura e o motivo disso pode variar, entretanto, como o Japão é um país situado numa região com forte atividade vulcânica, é quase certo que suas fontes são aquecidas por vulcões. É daí que vêm também as grandes quantidades de enxofre.
O enxofre pode aparecer na forma sólida ou, principalmente, gasosa. Gases de enxofre podem ser bem perigosos, como Senku diz. O sulfeto de hidrogênio, por exemplo, foi usado até como arma química pelos ingleses na Primeira Guerra Mundial. Fontes termais não liberam tantos gás a ponto de criar uma zona letal, mesmo assim é bom tomar cuidado porque nunca sabemos quando as atividades vulcânicas podem aumentar e produzir mais. Em 2008 o Japão passou por uma onda de suicídios onde pelo menos 500 pessoas morreram (fonte: Wired) usando o sulfeto de hidrogênio produzido ao se misturar coisas que podem ser facilmente compradas, como produtos de limpeza.
Temos praticamente as mesmas propriedades para o dióxido de enxofre, o outro gás citado por Senku. Mais do que nos vulcões, esse gás é produzido aos montes no que envolve petróleo, seja nas indústrias ou nos automóveis. Quando ele vai para a atmosfera, pode reagir com partículas de ar e gerar a famigerada chuva ácida. Uma diferença que pode ser percebida é que o sulfeto de hidrogênio tem cheiro de ovo podre e o dióxido de enxofre cheira a fósforos queimados. O primeiro é um pouco mais denso que o ar e o segundo é muito mais denso, então ambos ficariam próximos do solo mesmo.
Existem relatos de riscos em fontes termais, mas não é do jeito que vemos em Dr. Stone. Tanto que fontes são frequentadas aos montes e os casos de acidentes são uma pequena porcentagem do número total de pessoas que passam por lá. O que pode acontecer é, como já citei, uma atividade vulcânica aumentar repentinamente e liberar mais do que o comum. Quando há erupções de vulcões sempre existem cientistas medindo os níveis desses gases no ar.

Falando em medição, quero comentar rapidamente da lança detectora de gás: a prata realmente reage com compostos de enxofre, como o sulfeto de hidrogênio, formando um sal chamado sulfeto de prata, que é escuro. Esse é um problema comum para quem tem joias ou objetos de prata, como talheres, principalmente porque compostos de enxofre podem ser achados até saindo do escapamento de carros e se espalham pelo ar. Esses objetos ficam escuros se não forem polidos para tirar esse acúmulo de sal.

Não basta apenas saber que tem gás, é preciso resistir a eles. Daí que vêm as máscaras. As que Senku fazem estão ligadas a um tubo, que por sua vez se liga a um purificador. É o purificador que possui a ciência que nos interessa.
Senku usa carvão para neutralizar gás e isso é... até que possível! Só que com um grande "mas". Para neutralizar o gás seria preciso usar carvão ativado, que é diferente do carvão usado pra fazer churrasco, embora os dois sejam feitos de madeira queimada. O carvão ativado já começa diferente, pois vem de madeiras menos rígidas. Às vezes é feito com cortiça ou casca de coco. Depois, a queima dele também é diferente, com alta temperatura e pouco oxigênio. Tudo isso deixa ele mais poroso, como uma esponja e é essa propriedade que interessa, já que, assim, ele se torna capaz de sugar substâncias ao seu redor.
Cápsulas de carvão ativado são usadas em casos de envenenamento, pois absorvem o veneno antes que o corpo o faça. É usado não só em pessoas, como também em animais e os usos vão além, como filtros para ar condicionado, geladeira e, é claro, máscaras de gás.
Vimos que Senku não teve tanto cuidado ao preparar o carvão, então provavelmente as máscaras não tinham um poder absorvente tão bom ou sequer o tinham. Um erro bem perigoso, afinal eles não estavam lidando com um simples gás venenoso, mas sim um par de gases barra pesada!

Existe ácido sulfúrico em fontes termais, mas é uma substância que se mistura muito facilmente com água, então quase nunca é encontrado na forma pura. Acontece que, ao se misturar com água, ele perde o poder corrosivo, então se torna quase inofensivo nesses lugares. Sabe o mais louco? Uma das principais fontes de ácido sulfúrico são bactérias! Bactérias que vivem em condições de temperatura absurdas e não precisam de oxigênio, porque respiram compostos de enxofre, dando origem aos gases que já vimos acima e também ao ácido sulfúrico. Incrível, não é?
O que faz o ácido queimar é ele reagir com a substância com a qual está em contato. Na maioria das vezes ele destrói as ligações químicas, desfazendo os blocos de construção da substância, causando corrosão.
Entretanto é preciso que haja a reação para que aconteça a corrosão. Como o ácido sulfúrico e a sílica não reagem entre si, esse ácido não corrói vidro.

Agora, com o ácido sulfúrico, vamos começar o festival de criação de substâncias.

Na química, existe um processo chamado reação de dupla troca. Ao misturar um ácido com um sal, eles irão trocar de elementos entre si e, como resultado, teremos outro ácido e outro sal diferentes. Em um exemplo genérico onde cada letra é um elemento, teríamos que a mistura de AB com CD iria dar como resultado AD e CB.
Senku mistura o ácido sulfúrico (o A é hidrogênio e o B é enxofre) com sal comum, o cloreto de sódio (o C é o sódio e o D é o cloro). Assim, após a reação temos um composto CB, de sódio e enxofre (o novo sal, sulfato de sódio), e o novo ácido AD, que será feito de  hidrogênio e cloro e que é o que eles queriam, o ácido clorídrico. Na indústria, essa transformação é chamada de Processo Mannheim.
É claro que o mangá toma muitas liberdades, porque esse processo é bem ideal. Na vida real, para que desse 100% certo, seria preciso medir certinho a quantidade de ácido e sal colocado, teria que controlar muito bem a temperatura e etc., já que são muitos fatores envolvidos para que essa troca ocorra com perfeição.

No procedimento seguinte, Senku não diz qual o nome do mineral que ele raspou nas fontes termais, então eu tenho que supor nessa parte. Esse mineral foi misturado com o ácido clorídrico para gerar ácido clorossulfúrico. Pra falar a verdade, sintetizar esse ácido não é algo simples ou com muitos caminhos, então o chute é quase certeiro: ele usou trióxido de enxofre (ou também chamado de óxido sulfúrico). A mistura de trióxido de enxofre com ácido clorídrico gera o ácido clorrosulfúrico, eu só não sei dizer (nem achei resultados numa pesquisa) se esse composto existe em fontes termais.

O hidróxido de sódio, que Senku alerta ser usado para derreter cadáveres, nada mais é que soda cáustica, que de fato é bem perigosa e pode causar queimaduras graves. Ah, sobre yakuzas usando para dissolver cadáveres, parece ser verdade, segundo essa notícia do Tokyo Reporter.
Mesmo com todo esse perigo é relativamente fácil comprar soda cáustica, porque ela é usada para fazer sabão artesanal a partir de gordura. E o jeito de fazer também é bem simples, basta realizar eletrólise.
A eletrólise é aplicar eletricidade na água até uma reação química acontecer, já que a energia força a troca de elétrons entre os átomos, fazendo-os se ligarem de formas diferentes. Se for feita a eletrólise com uma mistura de água e cloreto de sódio (basicamente, água salgada ou água do mar) o resultado é soda cáustica e os gases cloro e hidrogênio.
Aqui vale a pena falar sobre a escala de pH, que vai de 1 até 14. O 1 é o máximo de acidez possível, que vai diminuindo até o 14, que é o máximo de uma base. A água possui pH 7, ali no meio, por isso é um líquido bem tranquilo. Ácido sulfúrico tem pH 1, o hidróxido de sódio tem pH entre 13 e 14. Ou seja, os dois máximos, ácido ou base, podem corroer, embora façam isso de formas diferentes. Tecnicamente falando, bases fortes não são chamadas de corrosivas e sim de cáusticas, para diferenciar.
É com o hidróxido de sódio que Senku obtém bicarbonato de sódio, e esse sim é um ingrediente direto, como veremos.

Por fim, a amônia. Sim, é verdade que dá pra tirar amônia da urina. Não exatamente na urina assim que é expelido, mas após deixá-la uns dias de lado. Algumas bactérias presentes começam a fazer o amoníaco, que é o que dá um cheiro forte e ruim (quem já foi em banheiro químico provavelmente já sentiu).
É claro que é um processo nem um pouco eficiente, só que é acessível.

Agora vamos à parte mais complexa, que é a criação da sulfa. Existe uma regra agora que vai se aplicar a todos os processos: as misturas são verídicas, os componentes também, porém dificilmente iriam dar bons resultados. Senku não estava usando instrumentos de medida, ferramentas como pipetas, nem nada do que até mesmo cientistas de séculos atrás tinham para se certificar de que estavam fazendo tudo do jeito certo. Misturar substâncias assim no olho e dar um resultado ideal quando se fala de química nesse nível é praticamente impossível, até mesmo se ele tivesse anos de prática (então imagine fazendo de primeira). Novamente, entendo que tudo foi feito assim porque é um anime, precisa de dinamismo e ser emocionante. Só quero deixar claro que na vida real as coisas são diferentes.
Vários passos e processos são omitidos e eu acredito que seja para esconder a complexidade de alguns deles. Vou comentar apenas os mostrados.
Fazer anilina a partir de alcatrão tratado com ácido clorídrico é possível, mas está longe de ser o método usado atualmente. Senku faz do mesmo jeito que os cientistas do século 19 faziam para isolar essa substância. 
Com o álcool e o vinagre eles obtiveram uma cetena, que de fato reage para formar anidrido acético.
A partir daí, o que vamos fazer agora é construir a molécula de sulfa adicionando ou retirando pedaços por meio de reações. 
A anilina reagindo com o anidrido acético ganha um pedaço de molécula chamado de grupo acetila, daí o nome dessa reação: acetilação. O que resta se chama acetanilida.


O próximo passo de chama clorossulfonação, adicionando, obviamente, o ácido clorossulfúrico. Isso faz com que nossa molécula de acetanilida ganhe o grupo clorosulfonil, tornando-se (e lá vem os nomes mais difíceis ainda) cloreto 4-acetamidobenzenesulfonil.


Depois a amônia entra na jogada. Ela é responsável por tirar aquele átomo de cloro da molécula e adicionar um grupo amina no lugar. Forma-se, então, o 4-acetamidobenzenosulfonamida.


Para finalizar, adiciona-se algum tipo de ácido (Senku usa o ácido clorídrico) e depois bicarbonato de sódio. Essas últimas misturas resultam na sulfonamida!




Por se tratar de um processo tão complexo, eu fiquei realmente impressionado como tudo que foi falado está correto e descreve bem o processo. Isso, é claro, se ignorarmos o que já falei de ser praticamente impossível fazer tudo isso sem um laboratório com equipamentos mais adequados.

Foi cansativo, mas finalmente chegamos ao final dessa postagem.
Não se esqueça de compartilhar e comentar o que você achou. Se sobrou alguma dúvida basta comentar!

Confira todas as partes que já fiz (é só clicar na imagem):


https://universoanimanga.blogspot.com/2018/12/a-ciencia-de-dr-stone.html
Parte 1
https://universoanimanga.blogspot.com/2019/12/a-ciencia-de-dr-stone-parte-2.html
Parte 2
https://universoanimanga.blogspot.com/2020/01/a-ciencia-de-dr-stone-parte-3-remedio.html
Parte 3: Especial da criação de Remédios

https://universoanimanga.blogspot.com/2020/03/a-ciencia-de-dr-stone-parte-4.html
Parte 4

https://universoanimanga.blogspot.com/2020/04/a-ciencia-de-dr-stone-parte-5-especial.html
Parte 5: Especial da criação do celular
Parte 6 



Parte 7: Armas de guerra

Parte 8




Até a próxima postagem!

3 comentários:

  1. Parabéns pela postagem! Muito completa. De um jeito explicado bem interessante sobre a ciência mais verídica por trás do anime. Vou ver as outras partes. Ótimo trabalho!

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  2. texto extremamente completo! parabéns pelo trabalho, é bastante significativo para os fãs de Dr. Stone e amantes da ciência, parabéns mais uma vez.

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