Postagens relacionadas

Recent

quinta-feira, 5 de março de 2020

A Ciência de Dr. Stone - Parte 4

Vamos para a parte 4 da série de posts sobre a Ciência de Dr. Stone, onde analiso o que é mostrado no mangá/anime e vejo se faz sentido de acordo com a ciência.
Antes de continuar, já viram as outras partes? Tem a parte 1 (onde comento sobre as primeiras invenções de Senku), a parte 2 (focada nos truques de "mágica" que são na verdade experimentos do Chrome) e a parte 3 (que é um especial sobre a preparação do laboratório e fabricação do remédio).



Como a parte anterior era um especial eu não a fiz com os itens em ordem cronológica, preferi focar apenas no que era necessário para criar o remédio. Então essa postagem aqui vai abranger principalmente o que foi mostrado durante esse arco e que não estavam diretamente ligados à produção da sulfa ou construção do laboratório.

Quero começar voltando com algo visto muito rapidamente na introdução episódio 10, que não quis comentar antes para não atrapalhar o andamento do tema principal. Eu realmente não esperava que Senku conhecesse as forças fundamentais, já que esse é um assunto visto normalmente numa pós-graduação em física. Mas me deu a entender que ali era apenas um conhecimento de divulgação científica, não necessariamente aprofundado. Vamos à elas então.
No modelo atual da física para explicar o universo, todas as formas como tudo que existe interage uns com os outros podem ser reduzidas a apenas quatro interações: fraca, forte, gravitacional e eletromagnética. Pode pensar em qualquer interação na natureza, uma maçã caindo da árvore, uma explosão atômica, até o simples ato de você ser capaz de tocar em objetos sólidos, tudo isso é produto de apenas quatro interações básicas.
Resumindo cada uma rapidamente, começando pelas mais complicadas:
A interação forte é a que mantém as partículas unidas, portanto se temos átomos e moléculas hoje é por conta dela.
A interação fraca é a responsável por alguns processos das partículas, como o decaimento (o processo que transforma uma partícula em outras). Sem ela não teríamos o Sol funcionando, por exemplo.
A eletromagnética não é mais ou menos importante que as outras, só que é a que mais temos contato diretamente, por isso Senku a exalta mais que as demais. Ela é a responsável pelo funcionamento da luz, da radiação, da eletricidade, do equilíbrio nos átomos e tantas outras coisas que seria impossível listar tudo aqui. Quando tocamos um objeto nós não atravessamos ele por conta dessa interação, por exemplo.
A gravitacional é a mais problemática. Nós entendemos como ela funciona no dia a dia, mas quando queremos analisar o que a causa as coisas param de fazer sentido. Corpos com muita massa (mais pesados) geram uma força gravitacional maior, é por isso que planetas atraem uns aos outros, é o que faz ficarmos colados ao chão, que ajudou a formar a Terra, e muito mais.
Acredita-se que, no início do universo, as quatro forças estavam unidas. A física moderna já possui um modelo que unifica três delas, só falta a gravidade. A interação gravitacional é a mais esquisita das quatro, um exemplo é que todas as outras podem atrair ou repelir, mas a gravidade só atrai. E ela precisa de muita massa pra ser significativa, uma pessoa não gera uma força gravitacional considerável porque é muito leve, então imagine uma partícula.
Unificar as quatro é o maior desafio da física nos dias atuais.

Ok, acho que empolguei e falei demais sobre isso, é que é a minha área! Mas deixando esse papo mais abstrato de lado, vamos voltar às invenções palpáveis.

Existe um mito popular muito conhecido sobre a receita da Coca-Cola, de que ela é um segredo guardado a sete chaves e que só uma ou duas pessoas conhecem. O que a Coca-Cola faz para deixar seu sabor diferente ainda é um mistério mesmo, alguns acreditam que eles adicionam baunilha, outros dizem que é uma porção de lavanda. Mesmo assim, existem outros refrigerantes de cola no mercado, nem todos com o mesmo gosto específico, mas o sabor está lá.
No princípio de tudo a Coca-Cola surgiu como proposta de remédio, só depois virou refrigerante. Sabe qual era o ingrediente chave nisso tudo? Cocaína. Isso mesmo, a droga. Mas calma, era em pequenas quantidades. A matéria-prima do refrigerante era a folha de uma planta nativa da Bolívia e Peru chamada coca. Nativos da região já mascavam folhas dessa planta em busca dos efeitos que tinham. É a partir dela que se faz a cocaína usada como droga, por meio de processos que não vou descrever aqui.
Enfim, no meio dos ingredientes também havia cafeína, que já deixa a pessoa meio ligada. Cafeína e cocaína em pequenas doses causavam o efeito que tornava a Coca Cola uma bebida tônica. Porém a receita mudou, e isso há muito tempo mesmo, em 1903, quando a cocaína foi totalmente removida da receita e, pouco depois, a folha de coca foi completamente substituída pelo fruto dessa mesma planta, a noz de cola, que é o principal ingrediente de todos os refrigerantes do sabor, não só os da Coca-Cola.


Por estar no Japão, dificilmente Senku iria conseguir a folha ou a noz de cola, por isso ele usa coentro, junto com limão e caramelo. O caramelo provavelmente era pra dar o gosto doce característico dos refrigerantes. A indústria de refrigerantes utiliza outros produtos mais complexos e métodos nesse meio, então é impossível atingir com precisão o que compramos nos mercados. Ainda assim nada impede de se obter algo gostoso.
É impossível dizer se o sabor do refrigerante de Senku ficou bom só sabendo os ingredientes, então eu fiz uma pesquisa. Fui conferir alguns vídeos no YouTube e encontrei pessoas que fizeram a receita, sendo que algumas aprovaram, outras nem tanto. No fim, fica sendo uma questão de gosto mesmo.



Edição posterior: Eu tinha me esquecido de comentar sobre onde tudo isso é misturado, a água com gás. O mecanismo que Senku usa não é explicado, então ainda fiquei com algumas dúvidas sobre como ele fez, mas vou dizer o que acho que é.
Primeiro, a água com gás é basicamente água com alta concentração de gás dióxido de carbono dissolvido. Senku deixou um jarro que provavelmente tem alguma reação química que gera o dióxido de carbono (não me lembro exatamente se é citado, mas acredito que seja o vinho fermentando). Esse gás é levado até um tubo de bambu que fica girando em alta velocidade graças às pás em uma cachoeira. Pela ilustração do mangá, esse gás sai por furos direto na água guardada nesse tubo de bambu. A rotação (eu acredito) serve pra aumentar a pressão na água, facilitando que o gás de misture e dissolva nela. É provável que Senku nem tenha removido o oxigênio dissolvido e substituído por dióxido de carbono, ele simplesmente deve ter aumentado o dióxido a ponto dele estar em muito maior quantidade na água, deixando-a gaseificada. Hoje esse processo é feito em máquinas pequenas vendidas por aí e até em garrafas simples e portáteis.


As técnicas de forja no Japão Medieval são tão amplas e complexas que rendem estudos inteiros só sobre ela. Cheguei a comentar brevemente sobre o assunto na postagem anterior quando expliquei o forno tatara. Então aqui vou ser bem breve senão levaria o post inteiro falando sobre tudo.

A fabricação da espada tradicional japonesa é um processo que evoluiu bastante desde que foi criada. O segredo está no material: o aço. O aço é a mistura de ferro com carbono e o truque é que você pode mudar as propriedades dele adicionando mais ou menos carbono na mistura. Colocando mais carbono o aço fica muito duro, porém se alguém tentar dobrar ele provavelmente vai quebrar. Com menos carbono o aço fica mais flexível, só que pode acabar sendo cortada por outra espada que for mais dura.

No caso da katana, ela era feita de forma a aproveitar as melhores partes desses dois tipos de aço. Existem dezenas de formas diferentes de se fazer isso, sempre gerando tipos diferentes de espadas. No começo, se preparam tipos diferentes de aço, alguns mais maleáveis, outros mais duros, sendo que cada um tem um nome específico dentro da cultura (pra você ver como o negócio era sério). Depois cada tipo de aço é moldado e montado, formando camadas. É possível ter, por exemplo, uma espada onde as laterais da lâmina são feitas do aço mais duro, assim ela não quebra com o impacto de outras espadas, porém o aço do fio (a parte que corta) é do mais flexível, assim ele não trinca com os impactos. Um outro tipo muito usado era o que tinha o centro da espada todo feito de aço flexível, que depois era recoberto por aço mais duro, assim a lâmina tinha todo o corte ampliado, mas como era feita na maior parte do flexível ainda podia dobrar sem quebrar. Novamente, todos esses tipos possuem nomes diferentes, um para cada variação, o último que citei, por exemplo, se chama makuri. Se todo esse processo do makuri for igual, mas a parte de trás da lâmina continuar com aço flexível sem cobertura do mais duro, então o nome já muda para kobuse.


No processo de forja a lâmina quente é martelada e dobrada várias vezes, assim as bolhas de ar e pedaços de materiais indesejados são eliminados. Essa era só mais uma das muitas técnicas usadas para melhorar a lâmina.
Uma delas é mostrada no mangá e no anime. Uma das fases mais importantes na fabricação é a têmpera, que é quando se resfria a lâmina que acabou de sair da forja quente. Durante o processo de fabricação da katana ela passa por dois resfriamentos: um deles é muito rápido (enfiando em água gelada, por exemplo) o ferro misturado com carbono se transforma em um material conhecido como martensita, que é absurdamente dura. Já um resfriamento lento transforma o ferro e carbono em outra estrutura, uma mistura de perlita e ferrites (Senku só cita esse último), um composto bem mais maleável. É, novamente, um jeito de deixar mais duro ou mais flexível onde é preciso.
Curiosidade: são esses processos de resfriamento que criam aquele desenho na lâmina, porque as partes mais duras e as mais flexíveis ficam com cores diferentes. Às vezes o processo era feito até para deixar a lâmina mais bonita, ou criar uma assinatura do ferreiro. Esse desenho, como todo o resto, possui seu próprio nome: hamon.

O hamon de uma katana. Fonte: Wikimedia Commons

Eu gostaria que tivessem mostrado no mangá um pouco mais desses processos de fabricação das katanas, porque eles são fascinantes, porém entendo que a situação exigia pressa.

Aqui vem novamente a minha observação de sempre. Por mais que os personagens soubessem a receita seria muito difícil acertarem de primeira, porque, como eu disse, é um processo que evoluiu bastante e envolve muito a prática do ferreiro para dar certo. Tanto é que tais técnicas eram passadas dentro de famílias, cada um com um método que achava capaz de deixar sua espada melhor.


Comentando rapidamente um outro assunto, o analgésico: a acetanilida que Senku produz pode sim ser feita a partir da reação de anilina com anidrido acético, duas coisas que ele já tinha. É tão simples que foi um dos primeiros analgésicos produzidos na história. Porém é muito difícil dizer se o feito por Senku teria o efeito desejado, pois como vimos em tudo relacionado a remédios as quantidades, graus de pureza e muitos outros fatores influenciam bastante na criação do medicamento.


Para finalizar, quero comentar sobre algo que já entra no tema do próximo post. Senku constrói uma máquina para fazer fios de ouro, só que antes prefere usá-la para fazer outra coisa... algodão doce!
O ponto aqui é bem simples. O açúcar, quando aquecido, se transforma em um melado (quem já fez cauda de pudim sabe bem do que estou falando). O que a máquina faz é girar bem rápido uma bacia com esse melado. Já observou que na máquina de lavar, quando ela gira bem rápido, as roupas vão parar nas laterais do tanque? O mesmo acontece com o melado na bacia, ele é jogado contra as paredes, só que como elas estão com furos o açúcar derretido é forçado a passar por esses buracos, ficando bem fininhos e gerando os fios.
Esse processo é chamado de trefilagem. Existem maneiras mais práticas de fazer isso, ainda mais quando se fala de fazer o mesmo com metais, mas entendi que essa foi mais uma daquelas jogadas do mangá para tornar as coisas mais divertidas. Afinal, o algodão doce teve propósito na história.


Por falar nisso, por que que todo mundo ficou daquele jeito quando experimentou pela primeira vez?
Nos primórdios da humanidade nossos ancestrais ainda não tinham começado a agricultura, então viviam como nômades procurando comida. Aqueles que conseguiam encontrar e consumir alimentos com açúcar acabavam tendo mais energia e mais disposição, por isso conseguiam se dar melhor nas caçadas, nas atividades da tribo e, consequentemente, em tudo mais que dependia disso. E não só encontrar, mas também era preciso ter mutações no corpo que pudessem quebrar o açúcar consumido para tirar energia dele.
Essas pessoas que se davam melhor tinham mais chances de ter filhos e, assim, passavam para eles o gosto pelo açúcar, seja ensinando diretamente a procurar tais alimentos, ou simplesmente pelos filhos herdarem o DNA, onde estão as instruções de funcionamento do corpo. Herdando o DNA, a criança herda as mesmas mutações, como a que comentei para ganhar mais energia do açúcar. É por coisas assim que chegamos aos dias atuais tão apaixonados por coisas doces.


O açúcar pode ser obtido nas frutas, onde ele aparecesse na forma de outras moléculas, como a sacarose (que a planta produz fazendo fotossíntese). Ao comermos a fruta, a sacarose vai para nosso corpo e o organismo trata de quebrar essa molécula para pegar o que precisa. Até aí ok. Mas quando consumimos açúcar daqueles que já vem em pó, estamos inserindo no corpo ele já refinado, ou seja, o organismo nem tem trabalho para quebrá-lo, o que proporciona uma absorção muito rápida. Pode até parecer legal, só que isso torna o organismo preguiçoso, além de que assim colocamos mais açúcar do que o necessário, o que gera várias doenças, como diabetes. É claro que o corpo quer gastar o mínimo de energia possível, então ele vai preferir o açúcar refinado. Por isso um bolo de chocolate com cauda parece mais suculento e gostoso que uma maçã, já que o corpo sabe que vai conseguir mais o que quer naquela fatia.
Além do mais, o corpo está acostumado com isso desde o passado. Era preciso garantir que estaríamos bem alimentados e com energia, então se fosse para escolher uma única refeição ao dia que fosse a que desse mais recursos. Ou seja, estamos evolutivamente treinados para amar o que é mais doce.



O pessoal que nasceu depois da petrificação provavelmente só tinha acesso ao açúcar por meio de vegetais e frutas, então quando Senku lhes deu um alimento que é açúcar refinado puro o corpo deles experimentou o que é ter que trabalhar pouco e absorver muito de uma vez só. A reação deles é simplesmente o cérebro supercontente pelo que acabou de acontecer, enviando vários hormônios de prazer para o corpo inteiro com o objetivo de que aquilo aconteça mais e mais vezes.T

Vou terminar por aqui, acho que já escrevi demais.
Fiquem ligados, porque a próxima postagem dessa série é outro especial, dessa vez para discutir a criação do celular! Não sei se ela vai demorar para sair, porque ainda não comecei a escrever e sei que ela vai ser complexa. Como eu sou muito interessado nessa parte de eletricidade, pode esperar um super-post!
Depois da parte 5 eu vou fazer uma pausa nessa série e voltar, provavelmente, quando a nova temporada do anime sair. A menos que demore muito para o lançamento, aí começarei a postar baseado no mangá mesmo. Para suprir o vazio que essa série vai deixar estou pensando em começar um sobre A Ciência de Cells At Work. Ainda estou no começo do anime e não se se vai ter tanto conteúdo, então se vocês conhecem o anime e aprovam a ideia avisem nos comentários!

Não se esqueça de compartilhar e comentar, ver que bastante gente está vendo e gostando me incentiva muito a continuar produzindo conteúdo!

Confira todas as partes que já fiz (é só clicar na imagem):


https://universoanimanga.blogspot.com/2018/12/a-ciencia-de-dr-stone.html
Parte 1
https://universoanimanga.blogspot.com/2019/12/a-ciencia-de-dr-stone-parte-2.html
Parte 2
https://universoanimanga.blogspot.com/2020/01/a-ciencia-de-dr-stone-parte-3-remedio.html
Parte 3: Especial da criação de Remédios

https://universoanimanga.blogspot.com/2020/03/a-ciencia-de-dr-stone-parte-4.html
Parte 4

https://universoanimanga.blogspot.com/2020/04/a-ciencia-de-dr-stone-parte-5-especial.html
Parte 5: Especial da criação do celular
Parte 6 



Parte 7: Armas de guerra

Parte 8




Até a próxima postagem!

6 comentários:

  1. Fala mano! Muito bom o post assim como os passados. Estou aguardando ansiosamente a parte 5. Até mais.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom, se não for pedir muito... Você poderia falar como que ele fez a água com gás? Tem que tirar o oxigênio e colocar o gás carbônico, mas como ele fez isso com os bambus???

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado por me lembrar, vou responder aqui e atualizar a postagem com essa informação.
      Bem, eu acredito que o Senku não tirou o oxigênio e colocou o gás carbônico, ele só colocou gás carbônico até a quantidade de oxigênio parecer nada. Pelo desenho que mostra no mangá, ele usou uma jarra com alguma reação que liberava o gás (acho que era fermentação de vinho), depois ligou um tubo desse jarro no bambu. O bambu ficava girando na cachoeira, então a água que tava dentro ficava se mexendo com mais pressão. Então, o gás carbônico era jogado nessa água por furos (vou colocar a imagem na postagem, se ficar confuso)e, pelo movimento e pressão da água, ele acabava se dissolvendo.
      Esse é meu palpite, não dá pra dizer com certeza porque o Senku não explica o mecanismo.

      Excluir
    2. Obrigado pela resposta, realmente não fazia idéia de como ele tinha feito... Me ajudou muito!

      Excluir
  3. Simplesmente incrível, seu post foi base do nosso trabalho para a escola, fiquei muito contente em descobrir tudo isso e ainda por cima nos ajudou bastante, muito obrigado pelo conteúdo intelectual.

    ResponderExcluir
  4. Parabéns, ótimo conteúdo para tirar dúvidas do anime

    ResponderExcluir